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28.9.05

Treplicando

Continuando um pouco a própria "carta aos reaças," e um pouco o comentário do André.

A idéia de que "é difícil definir quem é o quê no Brasil" é um lugar comum, com uma base real na comparação com os EUA,* em que o racismo é baseado na ascendência. Mesmo que não haja mais nos EUA leis, como havia antigamente**, definindo qual a proporção de sangue negro que faz de alguém negro, a definição ainda é simples, e um afro-descendente que queira dizer que é branco estará "passing," fingindo, ao contrário daqui, em que a mesma pessoa será branca de verdade. O problema dessa formulação é que ela tem uma meia-verdade embutida, e que é irrelevante mesmo quando é verdade.

A meia verdade: é difícil definir exatamente quem é o que no Brasil, dentro de uma fatia específica da população, que inclui parte dos "pardos" e parte dos "brancos. Não em geral. A Bené é preta, e ninguém duvida disso. A Rosinha Garotinho é branca. O Vicentinho e a Marina Silva já são mais complicados. E notem, ao contrário do que quer o movimento negro, que rejeita a classificação do IBGE em facor de uma dualidade branco/negro, a situação dos "pretos" é, em todo o Brasil, muito pior do que a dos "pardos." Mesmo tirando todas as variáveis exóticas. Pretos vivem mais separados dos brancos, têm menos valor no "mercado" matrimonial, ganham menos, são mais revistados pela polícia...ressalte-se, fazendo a eterna comparação com os EUA, que mesmo os pretos ainda sofrem de discriminação matrimonial umas vinte vezes menor do que nos EUA, com a pior região metropolitana brasileira, o Vale do Itajaí,**** tendo a mesma segregação matrimonial que a melhor americana, Washington.

A irrelevância: uma distinção clara entre grupos humanos não é condição necessária nem suficiente para o preconceito, ao contrário da teoria senso-comunista de que o racismo advém da observação das diferenças. Não só o racismo em suas diversas encarnações, da cordial à apartada, como até a xenofobia, que é muito mais radical e rejeita o contato, prescinde da possibilidade de distinção clara. A guerra da Bósnia é um exemplo: na Bósnia-Herzegovina pré-dissolução, a população falava serbo-croata. Não existe distinção física nem de sotaque. Dos 60% que responderam alguma coisa ao invés de simplesmente "iugoslavo" ao Censo, 36% se casavam com gente do "outro grupo." O sentimento religioso não era nem é particularmente pronunciado. A segregação residencial estava abaixo de 25iv* E conseguiram, mesmo assim, entrar em uma guerra étnica.

Do mesmo modo, o racismo no Brasil nunca precisou de uma distinção clara para se perpetuar. Nunca houve barreiras definidas, e nunca houve entraves ao contato que fosse iniciado pelo indivíduo que está acima na escala. O racismo brasileiro, se quiser assim, segue uma lógica individualista, "de mercado," que se opõe à lógica hierárquica do racismo americano ou sul-africano.v*Ao invés de ser enfiado pela sociedade numa casta específica, o indivíduo tem uma certa quantidade de "capital racial," que ele utiliza junto com "capital social," "capital educacional,' "capital mesmo' e afins. A questão é que esse capital racial não tem nenhuma tendência maior à equalização ao longo do tempo do que os outros capitais.

Claro que isso não impede que haja outras formas de preconceito no Brasil, e que elas infelizmente não disponham da mesma quantidade de inimigos que o racismo. Não só o preconceito social é aceito; preconceitos étnicos diversos também são, dos mais leves ("aquele turco safado finalmente foi preso", "japoneses foram mortos," "parece coisa de judeu") ao mais comum e, por ser exclusivamente brasileiro, não identificado como preconceito étnico, que é o preconceito contra nordestinos.vi* Mas aí é que está - com todas as minhas críticas à posição do movimento negro, foi graças a ele, e não a alguma evolução natural da sociedade, que o racismo deixou de ser escamoteado no Brasil. Até há pouquíssimo tempo atrás, o Brasil, oficialmente, era um país em que não havia racismo, como apregoado pelos relatórios brasileiros sobre racismo enviados à ONU. Essa mentira já foi denunciada no genérico, mas ainda não no particular, a ponto de se ter a situação em que racismo é crime inafiançável, mas os milhares de casos cotidianos - da pessoa preta que não pode usar o elevador social ao ministro do Supremo Tribunal Federal barrado pelos seguranças na própria possevii* - não geram condenações. É uma falácia falar de outros males brasileiros, ou mesmo de outros preconceitos, como argumento contra a luta anti-racista; uma coisa não exclui a outra - e, cinicamente, eliminar preconceitos de classe numa sociedade capitalista é um pouquinho difícil. O que gera um efeito interessante - a interação do racismo brasileiro com o preconceito de classe, ao mesmo tempo que minora a violência e radicalidade desse racismo, o torna mais difícil de eliminar.


E pra parar o texto abruptamente, apesar de não ter chegado a um final decente, lanço o Manifesto de um Homem Só Pelos Bugres nas Novelas de Época, do movimento pró-gobineau AMARACISTANOJENTO.


*A comparação é inevitável; no universo conceitual brasileiro, o etnocentrismo está mais centrado na metrópole do que cá na colônia.

**E ainda há para os índios.

***Sim, tanto pra uma quanto pra outra a quantidade de pretos (VdI) e negros (DC) na população geral já tendo sido levada em conta e eliminada.

IV* Para efeito de comparação, o mesmo índice, de dissimilaridade espacial, varia para negros (BR: pardos+pretos) entre 37(SP, RJ, PoA) e 48 (Salvador) no Brasil, e entre 75(NY) e 92(Chicago) nos EUA.

V* O racismo na Europa, apesar de se constituir basicamente em preconceito étnico, é ainda uma terceira história, embora tenha, na França desde as levas imigratórias da virada do século e na Grã-Bretanha desde a leva caribenha pós-descolonização, características que se assemelham mais na forma ao modelo americano, e no resultado ao modelo brasileiro.

VI* A força da associação entre preconceito étnico e socioeconômico no Brasil pode ser medida pela violência relativa do preconceito contra os grupos de imigrantes mencionados e os "paraíbas" e "baianos."

VII* Depondo contra a teoria da exclusividade do preconceito social; afinal de contas, é um juiz, velho e bem vestido tentando entrar no Supremo, não um sujeito em trapos. Ou, como disse uma tia-avó minha uma vez sobre o próprio filho, "ele entrou no aeroporto todo sujo e cheio de craca nas pernas. Ainda bem que ele é branquinho, senão tinham jogado ele no lixo."

Um comentário:

Anônimo disse...

A pensar. A pensar.