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30.10.05

Em meu nome

Na primeira página dos jornais de ontem, a manchete reza que "[A] Polícia mata chefe do tráfico da Rocinha numa emboscada." Não é verdade. Quem mata em emboscada não é polícia. A palavra mais correta é "assassino," mas se quiser atentar para o caráter institucional dos assassinos, pode usar "esquadrão da morte" ou "exército ocupante." Não faz absolutamente a mínima diferença se a vítima de assassinato é o Bem-te-vi ou a Madre Teresa de Calcutá.

Se ao menos fosse uma exceção...a emboscada, utilizando informantes para levar os bandidos a pontos onde serão fuzilados, é técnica corrente há alguns anos em São Paulo, Pernambuco, e agora no Rio. O Brasil parece seguir, no "combate ao crime," um caminho parecido com o que os EUA trilham no "combate ao terrorismo," e que me assusta muito. Tanto na condução da política imperial americana quanto na repressão cotidiana brasileira, a barbárie é um fato corrente há muito tempo, e ninguém deixa de saber disso, mas até recentemente essa barbárie não era oficializada, era hipocriticamente varrida para debaixo do tapete, apresentada como exceção vinda de agentes truculentos, e não do topo. Era mentira, claro - a polícia metropolitana de Londres não mata menos porque os policiais ingleses são bonzinhos, mas porque a ordem de cima não é porrar e matar. Mas confesso que prefiro a hipocrisia, no caso, à aceitação honesta do assassinato e da tortura como instrumentos válidos, à defesa de peito aberto do que a humanidade tem de pior.

Inclusive porque essa defesa da tortura significa a aceitação pela comunidade do princípio organizador "nós e eles." Tá que, em certo nível, esse princípio é inescapável, afinal "tu és aquilo," tat tvam así, é o dito indiano que, negando essa diferença, serve de declaração fundadora do monismo. Mas a definição de "nós" como sendo "o homem e o cidadão," o reconhecimento da nossa humanidade comum, é um traço da Civilização Ocidental e das revoluções burguesas que esses pulhas alegam defender. Inclusive porque a teoria utilitária de que a sujeição da tortura às regras legais se baseia na teoria de que a tortura legalizada tomaria o lugar da ilegal, o que contraria a regra. O mesmo vale para o assassinato policialesco. E não custa lembrar, falando de utilitarismo: a Colômbia, paraíso da força policial ilimitada, onde os esquadrões da morte são mais de 40.000 e controlam diretamente a maior parte do campo, também tem o pior índice de homicídios do planeta.

Voltando ao nós e eles, outro desenvolvimento brasileiro, além da aceitação da pena forte e dura cada vez maior, é a exaltação do cidadão de bem, que não é definido por não infrigir a lei, sendo que muitos inclusive exaltam o fato de se desobedecer certas leis. E mesmo os que não são a favor de sonegar imposto têm que admitir que não desobedecer nenhuma lei, no Brasil, é muito, muito difícil. O cidadão de bem é outra coisa, é um sujeito dessa classe oprimida que somos os brancos heterossexuais cristãos de classe média,* é alguém cuja condição é essencial e divorciada da prática ou de sua relação com a lei. É um ícone da aceitação cada vez maior do apartheid social,** também simbolizada na campanha anti-favela do Globo, ressuscitando a idéia da remoção dos favelados para alguma township distante. Me pergunto se todo mundo terá que usar o seu passaporte, ou só os Midenklaas mais escurinhos, pra provar que podem entrar nas áreas net Midenklaas?

Um, pensando melhor, a comparação com o regime de Apartamento sul-africano é injusta. As forças de segurança sul-africanas, num país do tamanho de São Paulo, nunca passaram de 900 assassinatos por ano, o que no Brasil, e especialmente no Rio, seria uma melhora e tanto.


*Classe média é um conceito infinitamente extensível pra cima no Brasil; afinal, o casal Staheli, assassinado na Barra, era de classe média, ganhando alguns milhões de dólares por ano.
**Que não deixa de ser em parte racial - afinal, a piada diz o sistema de cotas racial devia deixar a decisão sobre quem é preto a cargo de porteiros e PMs. E os profissionais citados são reguladores de relações de classe.

Um comentário:

Anônimo disse...

Essa campanha anti-favelas da zona sul e da barra do Globo esta enchendo a porra do saco mesmo, até o Cesar Maia está sendo criticado por ser contra a remoção das mesmas.

A minha solução pras favelas é aterrar a lagoa e fazer um mega conjunto habitacional ali, mas duvido que o pessoal da Zona Sul aceite viver perto de um monte de pobres...