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9.2.11

Efeito dominó

Uma das crenças mais caras aos neocons era a de que a derrocada da ditadura de Saddam Hussein no Iraque iria gerar um "efeito dominó do bem," fazendo com que outras ditaduras antiamericanas (na fantasia neocon, os termos são interligados) caíssem também. O pensamento é obviamente falho de diversas maneiras. Afinal, mesmo que se acreditasse que a democracia seria uma coisa auto-evidentemente boa, um exemplo a ser seguido automaticamente na mente dos vizinhos, isso dependeria de se estabelecer uma democracia no Iraque. E a invasão confunde as coisas, a partir do momento que qualquer legitimidade atribuída a algo é diminuída se esse algo foi imposto pelas armas. E, é claro, a maioria das ditaduras árabes e islâmicas não é antiamericana, muito antes pelo contrário, mas estreitamente ligada aos EUA, aos aliados europeus na Europa, ou a ambos.

Por outro lado, as revoltas e revoluções que começaram na Tunísia neste inverno boreal têm muito mais a ver com a primeira idéia americana de "efeito dominó," na qual a queda de um país para movimentos comunistas internos provocaria uma ascensão do comunismo em outros países. (Que também era furada.) Aqui, trata-se de movimentos internos pró-democracia se espalhando e comunicando. Este último verbo, em especial, é importante. A maior de todas as ditaduras islâmicas apoiadas pelos EUA, a Indonésia (um país nem tão menor assim em população do que os próprios EUA), foi derrubada por uma revolução popular em 1998, muito parecida com os atuais protestos no Egito; a situação não se espalhou para além das fronteiras indonésias.*

No mundo árabe, entretanto, a língua quase-comum transcende as fronteiras, auxiliada, como bem o pressentiu Mubarak, pela internet. Não é uma língua comum de verdade; o árabe clássico que todos falam em público e no qual escrevem não é muito mais inteligível a alguém que só tenha aprendido algum dos vernaculares do que o latim a um lusófono. Mas como todos aprendem esse árabe literário, ou pelo menos a maioria das camadas urbanas, podem se comunicar nele através da internet. Podem assistir a Al-Jazeera nele (e a Al-Jazeera é, desde que a BBC decaiu ao longo dos anos 2000, de longe o melhor órgão de notícias que vejo hoje no mundo). Podem, inclusive, combinar uma revolução transnacional nele.

À primeira vista, parece paradoxal a conclusão que se tira daí, que os países, e dentro deles as áreas, mais vulneráveis às revoltas por um assunto tão medieval quanto o preço do pão** sejam aqueles, portanto, mais urbanizados e desenvolvidos. Nem é tanto - a revolução francesa, afinal, atingiu o país mais rico da Europa. E, claro, isso se dá de forma desigual mesmo entre os países árabes cuja situação é mais próxima à do Egito e da Tunísia, isto é, ditaduras ferozmente seculares, baseadas numa "lei de emergência" eterna, relativamente mas não muito prósperas, alinhadas com os interesses das grandes potências, com um passado pendendo ao socialismo ou para ser exato ao dirigismo estatal com uma ou duas palavras de ordem socialistas.

A pergunta que não quer calar, portanto, é "quem é o próximo?" E podem apostar que ela está sendo feita em todo o mundo árabe - inclusive em Israel, que afinal tem, contando cidadãos de primeira e segunda categorias, uns 50% da população árabe.

No Iêmen e no Sudão, onde já houve bastante agitação, o problema é a pobreza, no sentido mais amplo do termo. A maior parte da população dos dois países vive ainda no campo, e é difícil de imaginar uma massa crítica coordenada pela internet se erguendo contra os ditadores. Sem coordenação de alguma forma, revoltas pelo preço do pão na capital se resumem a ser apenas isso. Revoltas esporádicas sem poder maior. No Iêmen, a prosperidade um pouco maior ainda dá esperanças, mas está se falando de um país em que os beduínos e o modo de vida da aldeia ou do camelo, longe de terem, como no Egito, um status de "povos nativos," parecido com o dos ameríndios no Brasil ou nos EUA, são boa parte da população - mais pra Bolívia. Por mais outro lado, na Bolívia, os Quechua e Aymara conseguiram derrubar o governo... na tentativa da Economist de quantificar as chances de uma revolução em cada país da Liga Árabe, o Iêmen aparece em primeiro.

No Marrocos e na Jordânia, as ditaduras monárquicas são mais light do que no resto do mundo árabe, e têm tentado administrar a insatisfação popular e o efeito dominó através de seguidas concessões. A possibilidade sempre presente, é claro, é de que essas concessões ao povo minem o apoio das monarquias dentro de seus próprios aparatos de poder estatais e paraestatais - para não falar do apoio estrangeiro, principalmente europeu; e nem se pode ignorar completamente a antipatia pelo que é visto pela população como apoio a Israel.

Na Argélia e na Síria, por outro lado, o problema é justamente o oposto: a ditadura é muito mais barra pesada ainda do que no Egito de Mubarak. E nem tem, como no Egito, pólos distintos de poder dentro do sistema; o exército e a polícia interna foram mantidos isolados por Mubarak por medo de que algum general o suplantasse numa quartelada, o que realmente não aconteceu até agora (mas talvez seja a solução sonhada por Obama e Netanyahu), mas na Argélia o exército é o próprio poder, enquanto na Síria ele manteve-se totalmente subordinado à dinastia reinante, enquanto outras figuras detinham outras seções do estado, e nunca foi criado um aparato policial completamente independente.

Na Líbia e nas tiranias monárquicas do Golfo Pérsico, por outro lado, a ditadura barra pesadíssima está combinada com muito, muito dinheiro, graças ao petróleo. Assim, os tiranos podem simplesmente subornar o povo, em boa parte - e no Golfo, principalmente nos países menores mas em algum grau também na Arábia Saudita, boa parte da população pobre, mais disposta a se insatisfazer, pode simplesmente ser deportada sumariamente, já que não se trata de cidadãos, mas de trabalhadores do sul e sudeste asiáticos, com vistos temporários e precários e que já são, em muitos casos, confinados em guetos.

Em Israel, incluindo a semiindependente Autoridade Palestina, e no Líbano, os países árabes mais democráticos, ou menos autoritários, a situação de insatisfação popular, por um lado pode ser canalizada através dos trâmites democráticos, diminuindo as chances de revoluções, e por outro lado pode se expressar mais livremente. Na Palestina, em particular, as chances de uma revolução contra Hamas, OLP, E Israel, eventualmente apoiada por uma fatia considerável na própria população israelense, não me parecem nada desprezíveis. Será que o Hamas teria coragem de atirar numa multidão? O IDF tem matado gente sem se preocupar com danos colaterais há décadas, mas será que teria coragem de atirar numa multidão pacífica protestando?

Finalmente, no Iraque, falar em revoltas e insatisfação popular parece estranho, num país que ainda mal saiu da guerra civil, com carros-bomba explodindo diariamente e conflito armado uma realidade, e que ainda está ocupado por um exército invasor. Se a pergunta crucial em cada um dos outros países acaba sendo "será que o ditador estaria disposto a um massacre para acabar com uma revolução, assumindo-se que ela ocorra? Será que suas tropas obedeceriam a essa ordem?", no Iraque massacres já fazem parte do cotidiano. Por outro lado, falar no Iraque é constatar uma realidade curiosa - longe de ter um efeito dominó no sentido da democracia, a invasão do Iraque e suas consequências são, na Síria, dos maiores argumentos pela manutenção do regime.

The proximity to Iraq, another ethnically and religiously diverse country, is believed to play a major role in Syria's scepticism towards democracy and limited hunger for political change. About a million Iraqi refugees have come to Syria since the US-led invasion of Iraq in 2003.

"The Iraqi refugees are a cautionary tale for Syrians," Landis says. "They have seen what happens when regime change goes wrong. This has made Syrians very conservative. They don't trust democracy."






*O equivalente indonésio da Praça Tahrir foi a Praça Merdeka. Sim, Merdeka. OK, achar isso engraçado deve ser prova de imaturidade.

**Há registros de revoltas pelo preço do pão desde os tempos faraônicos. Nos tempos romanos, mais de uma vez aconteceram situações semelhantes à da Irlanda durante sua Grande Fome, nas quais o trigo do Egito era enviado pelos comerciantes e pelo Estado para Roma enquanto os egípcios não podiam pagar por ele.

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