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26.5.11

Palavrões V - Bowdlerização

Bowdlerização é o nome semi-erudito para o que também é chamado de disneyficação - o nome erudito é ad usum Delphini, ou apenas ad usum. A palavra se baseia no nome do Thomas Bowdler, um médico inglês que publicou o "Shakespeare para as famílias, no qual nada se adicionou ao texto original, mas foram omitidas aquelas Palavras e Expressões que não podem ser lidas em voz alta perante uma Família," uma edição de Shakespeare sem palavrões, prostitutas, e suicídios, entre outros pecados. Publicou, também, uma Bíblia na mesma linha. O nome pegou para toda e qualquer ocasião em que se pegue um texto e, geralmente mas não necessariamente em nome das crianças, se dê uma amaciada nele para distribuição geral.

É até um exemplo de injustiça: com o Dr. Bowdler, porque houve muita coisa muito mais barra pesada em termos de expurgação do texto Shakesperiano ou bíblico, desde o começo da popularização do livro entre a classe média urbana do século XVIII até os dias de hoje do que o texto do "Family Shakespeare" de 1818, e com a era vitoriana, associada com esse tipo de palhaçada - metade das referências que vejo por aí sobre bowdlerização fala que ela foi uma atitude vitoriana - porque em 1818 o rei era o mesmo Jorge III que perdeu as colônias americanas ao sul do São Lourenço. Vitória, se é que já era nascida, era a terceira da fila.

Também é um problema real a se enfrentar com literatura infantil de eras passadas. Afinal de contas... talvez literatura infantil influencie as atitudes e noções das crianças, talvez não. Eu mesmo lia Kipling direto e (que eu saiba) não sou mais racista do que a média. Mas afinal de contas a noção de que essa influência existe é parte da própria preocupação dos autores da literatura infantil; e nem todo mundo que vai ler, digamos, Huckleberry Finn ou A Fantástica Fábrica de Chocolate tem acesso a outras informações que lhes permitam olhar mais criticamente para essas obras. A Fantástica Fábrica de Chocolate, com seus umpa-lumpas escravos raptados das florestas africanas, aliás, é um exemplo de como isso não se aplica apenas a obras "vitorianas" (não, Kipling também não é exatamente vitoriano), já que foi escrito no ano em que eu nasci, 1977. (Sim, eu sou um pouco mais velho que Ramsés e Tutancamon).

E aí, como se faz? Permite-se apenas aos adultos olhar para o que foi feito para crianças antigamente? Muita gente não gosta lá muito da idéia de que as crianças de hoje não poderiam ter o privilégio, porque é sim um privilégio, de ler Twain, Kipling, ou mesmo Monteiro Lobato. Por outro lado, quem fica particularmente indignado com qualquer bowdlerização ou esqueceu do conteúdo ou não se importa em ver crianças lendo que negros são inferiores. Nem precisamos ficar no racismo, porque há um sem-número de noções que mudaram - se bem que coisas como papel das mulheres, religião, e classe socioeconômica continuam sendo algo controversas até em livros e outras obras para crianças feitas hoje em dia. As princesas da Disney que o digam.

Nem é apenas a educação infantil o problema. Quando Tintin explica aos congoleses sobre "vosso país, a Bélgica," ele passa a ser lido como um branco ridículo colonialista, e não como uma simples estória de aventuras. E aí, para manter o espírito com que se lia, deveria ser alterada a estória? Parece ter sido a decisão da Casterman, já que eu quando li Tintim em criança, não vi a famigerada frase.

Nenhuma das três opções (bowdlerização, reprodução integral, não-reimpressão) parece exatamente muito boa, não é?

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