Pesquisar este blog

14.6.11

Lorenzianas

A Anefac (associação de gente que lida com finanças) divulgou a notícia de que, apesar do oba-oba recente, o Brasil continua se destacando, especialmente entre seus "novos pares" do G20, pela desigualdade e pela pobreza.

Não chega a ser uma notícia especialmente bombástica, a não ser para quem caiu na confusão geralmente feita no noticiário entre estoque, fluxo, variação (no fluxo, geralmente - variação no estoque sendo, bem, o fluxo), e tendência. Assim, por exemplo, o PIB é visto como riqueza (um estoque) quando ele representa a geração bruta de riqueza (isto é, um fluxo, e que nem conta a depreciação e outras perdas de riqueza - o PIB de um país que tem que reconstruir tudo é grande). E confundido com a variação anual no seu valor, que é chamada de "o pib." E do mesmo jeito, a desigualdade brasileira tem caido muito rapidamente, em termos relativos, nos últimos anos, mas essa queda é a partir de um valor absurdamente alto.

Pausa para explicar: a desigualdade medida pelo índice de Gini não é algum tipo de expressão direta da desigualdade absoluta. Ela mede, pra começar, apenas uma dimensão da desigualdade: a renda. Não está incluída a riqueza acumulada. Mais importante, não está incluída a prestação de serviços universais. Isso quer dizer que quando você lê que a desigualdade (índice de Gini) do Reino Unido (0,36) está próxima da dos EUA (0,40), ou pelo menos mais próxima destes do que da Escandinávia (entre 0,247 e 0,269), lembre-se de que o fato de britânicos terem acesso a um sistema único de saúde, e os americanos terem que pagar médico do próprio bolso, não entra na equação.

E mesmo a desigualdade de renda não é (por impossibilidade estatística, e até por conta de sigilo fiscal) da sociedade como um todo, mas por grupos de renda com uma resolução bem baixa, quintis (20% mais ricos, próximos 20%, etc) ou decis (acho que não preciso explicar). Por isso mesmo que sociedades consideradas profundamente desiguais na África têm índices de Gini baixos: como é meia dúzia de pessoas, e não 10% da sociedade, que é mais rica, os 10% (e os próximos 10%, e etc) não chegam a ser tão mais ricos, na média, a ponto de pesar no índice.

Mesmo com todas as ressalvas, é impossível negar que a mudança recente no Brasil foi expressiva. E isso é mais impressionante quando nos damos conta de que a mudança de atividade do Estado, nesse sentido, não foi o passar de um estado regressivo (que tira dos pobres para dar aos ricos) para um progressivo (dos ricos para dar aos pobres), ou mesmo neutro. Durante muito tempo, tanto a arrecadação de impostos quanto as transferências diretas de renda do Brasil foram fortemente regressivas, tanto em termos individuais quanto regionais. Hoje, isso mudou para algo francamente regressivo, no caso da distribuição, e fracamente regressivo, no caso da arrecadação. Em outras palavras, a distribuição de renda melhorou porque o grau em que o governo privilegia a classe média (os 20% mais ricos) e os ricos (o 1%) diminuiu, não porque ele atualmente privilegie os pobres.

Que essa mudança recente (principalmente devida ao bolsa-família, mas também à maior eficácia da Receita desde o Maciel) tenha sido para uma situação ainda regressiva, mas de si já tenha baixado a desigualdade expressivamente mostra o quanto a desigualdade brasileira não é "natural do sistema," ou uma herança externa ao estado e presente na sociedade que o governo ainda não conseguiu debelar, mas sim uma situação artificial construída pelo próprio estado. O estado brasileiro, longe de, como querem, ter se tornado ou jamais ter sido um Robin Hood, foi um Hood Robin pela maior parte de sua vida, e ainda é, se pouco. E a desigualdade brasileira é um pouco pior do que não mitigada pelo estado, ela sempre foi ativamente promovida por este. De novo, falando apenas em renda, transferência direta, incluindo aposentadorias e poupanças mas não nenhum gasto do estado. Não entra nessa conta o ICMS pago pelo seringueiro do Acre para sustentar a universidade da elite paulistana. Não entra nessa conta o IPI pago pelo mendigo no Anhangabaú que vira juro da dívida e assim fundo de renda fixa. Não entra o dinheiro do FAT sustentando empreiteiras. Não entra o ônibus ou metrô que tem que andar com as próprias pernas enquanto a gasolina tem subsídio de 14% via Petrobrás. Só transferências diretas.

Nos EUA, por outro lado, considerados a epítome do capitalismo selvagem entre os países ricos, e símbolo de liberdade e capitalismo, oposto à comunista Terra Brasilis, entre os colunistas e neodescolados da direita tupiniquim, a arrecadação de impostos é fortemente progressiva, e a distribuição de rendas medianamente progressiva. Isso apesar de todos os cortes de impostos e serviços do Reagan e do Bush. (Mas, de novo, sem levar em conta a falta de SUS.)

Nenhum comentário: