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10.7.12

El Nueve de Julio

Ontem foi feriado em duas entidades políticas de uns quarenta e poucos milhões de habitantes cada: a República Argentina e o Estado de São Paulo. Na primeira, tratou-se de algo comum, a celebração de uma data arbitrária no processo pelo qual as elites locais se tornaram independentes da metrópole, a Espanha. No segundo, igualmente foi algo comum: a celebração de uma revolta contra o poder central brasileiro. Só para ficar em feriados estaduais, é o caso também do Rio Grande do Sul e de Pernambuco (este celebra uma rebelião anterior a 1822). A banalidade da celebração da "revolução" "constitucionalista" de 1932 depõe contra visões extremadas dela, como a do Sakamoto, que literalmente demoniza a Weltanschauung paulistana de que ela seria emblema. (Nunca pensei que fosse falar "literalmente demoniza," confesso.)

Claro que a demonização é uma tentação forte quando se vê as cenas ridículas de um desfile militar de uma entidade sem forças armadas,* celebrando uma derrota militar - não que celebrar uma derrota seja incomum, mas geralmente acontece, como no ANZAC Day que serve de feriado principal para a Austrália e a Nova Zelândia, num espírito de luto mais que celebração do poder. E a oligarquia paulista, derrotada na sua tentativa de guerra civil (ao contrário do ocorrido no Rio Grande do Sul, a idéia não era se separar do Brasil, mas tomar o poder no país), realmente tentou criar um projeto de cultura e poder alternativo ao do governo federal, que passou pela criação da USP e pelo enaltecimento dos bandeirantes como heróis especificamente paulistas, em oposição ao enquadramento deles como heróis brasileiros pelo governo federal. Paradoxalmente, enquanto os herdeiros dos separatistas gaúchos criaram uma autoimagem como Märcher do Brasil, os paulistas, derrotados em sua marcha rumo ao Rio, criaram uma autoimagem em oposição ao país.

E é aí que está o problema com as bem naturais reações à "mitologia bandeirante" : ao inverter o processo, com os bandeirantes como vilões especificamente paulistas, dão força à noção de que eles, e todo aquele complexo - incluindo a própria lealdade a São Paulo - são mesmo especificamente paulistas, e aí fomenta, ao invés de anular, um dos grandes trunfos da oligarquia paulista: a identificação desse complexo de idéias com São Paulo. Se você não põe em questão a noção de que para ser paulista, et fier de l'être, deve-se ser um semifascista que admira caçadores de escravos, está deixando de disputar uma parcela considerável da população do estado - e, portanto, uma parcela considerável da população do Brasil, já que, ao contrário da situação de 32, hoje SP responde por mais de um quinto do Brasil, e apenas a região metropolitana da capital já tem mais gente do que Minas Gerais.

Não que essa consideração política, prática, seja a única a se ter. Aceitar a ideologia "bandeirante" como própria a São Paulo para então condená-la é operação parecida com a que aceita que o machismo e a homofobia fazem parte integral, indissociável, do Islã. O fato de que paulistas estejam em posição privilegiada no contexto brasileiro, ao contrário dos muçulmanos no contexto mundial, não faz disso menos verdade. A diferença é que os líderes do pensamento que usa o machismo para demonizar o Islã lucram com isso.


PS Outra tentação a se evitar, ao falar merecidamente mal da patacoada de 32: a de assumir que, só porque a oligarquia paulista era e é uma súcia de canalhas, o outro lado era do bem, como fez o Brizola Neto. A diferença entre os projetos de cultura e civilização do Estado Novo e do Estado Bandeirante estava nas posições relativas da oligarquia privada e do estado num projeto capitalista e autoritário; disputavam quem seria o parceiro sênior, apenas isso. Entre Getúlio e a oligarquia paulista, torço pelo asteróide.

PPS Uma coisa que nenhuma das críticas mencionou até agora é o quanto de mentira há na alegação de que aqui é a "locomotiva do país." São Paulo é subsidiado pelo Brasil, não o contrário.

*Tornadas, é verdade, menos visualmente ridículas do que deveriam ser devido ao aparato farcesco de que se cerca a polícia militar. Com direito a dragões e veículos de combate. Nessas horas não aparece um "liberal" para denunciar o gasto desnecessário de dinheiro público.

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