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27.11.12

Fear of small numbers II - oclo, demo, eudaimonio

O historiador e panfletista americano Mike Davis, em sua coletânea "Elogio dos Bárbaros," narra o confronto entre um militante do Partido Democrata e um mineiro dos apalaches - isto é, um representante de uma classe (trabalhadora) e uma região (pobre e beneficiária do New Deal) que tradicionalmente representava a base sólida do partido - na qual o primeiro pergunta ao segundo "por que vocês nos abandonaram?" A resposta, algo óbvia, é "não fomos nós que abandonamos vocês, mas o contrário." O Partido Democrata se afastou das posições sociais-democratas rooseveltianas, baseando sua oposição aos republicanos (que por sua vez se mantém com todo o cabedal conservador unificado, desde a Southern Strategy) em questões morais-culturais e abraçando o neoliberalismo reaganita. Seus maiores esteios não são mais sindicatos e a classe trabalhadora, mas indústrias criativas e advogados, de um lado, e não-brancos, do outro; suas bandeiras principais são da guerra moral - direitos de minorias, acesso universal, meio ambiente - e não a representação dos trabalhadores contra o capital. Clinton, afinal, promoveu um processo de achatamento dos impostos

A estória, claro, é bem mais complicada do que o resuminho acima, e já o era mesmo antes de Obama resgatar, no mundo pós-Goldman Sachs, bandeiras como aumento de impostos e saúde universal. E, ao contrário do que Davis conclui em seu artigo, a distribuição de votos para Obama implica que os democratas não estão tão errados assim, em termos puramente pragmático-eleitorais. Mas ela reflete uma realidade problemática para a esquerda global, que não é óbvia, muito menos automática, mas é marcante: a disputa entre a defesa do bem-estar material do maior número de pessoas e a defesa daqueles particularmente oprimidos pelo sistema. As duas, que podem ser vistas como partes de um todo de resistência contra uma quiriarquia opressora, na prática são vistas, ao contrário, como afinididades eletivas e mesmo concorrentes.

É isso, e não algum pacto com o demônio, que faz com que seja possível a Dilma, seguindo os passos dos governos do socialismo real, planejar a destruição dos ambientes naturais e povos tradicionais da Amazônia, em nome do desenvolvimento. É uma falácia múltipla, sem dúvida, já que a conta que ela pressupõe é a de que não é possível promover desenvolvimento rápido sem comoção social de outra forma, e comoção social é (alguns poderíamos argumentar) exatamente do que precisamos; na conta de Dilma & Co o modo de vida da classe média, com consumo regular de duráveis*, incluindo carro, com casa própria, com viagens frequentes, não pode ser ameaçado e deve, ao contrário se expandir eventualmente a todos os cidadãos.

Não dá pra dizer simplesmente que essa não é uma visão de esquerda; ela é, afinal, o sonho stalinista, que se irmanava com seus irmãos do outro lado da cortina de ferro, discordando apenas nos meios pelos quais chegaríamos lá, e nem tanto assim, em muitos casos.** Se trata da adição de "prosperidade" à lista da revolução francesa de liberté egalité fraternité. Bem entendido, no caso do Stalin, com supressão da "liberdade." E a questão da prosperidade não pode ser respondida, numa situação brasileira, com a simples renúncia ao aumento da prosperidade coletiva, como nos países ricos. Uma igualdade universal nos EUA, com uma renda de 4.000R$ por mês de renda disponível pra cada um, talvez fosse razoável, mas uma igualdade universal a menos de 800R$ por mês per capita? Não significa não apenas não viajar, mas não ter acesso a serviços que consideramos básicos; e uma vindicação aparente da "esquerda tradicional proletária anti-mudernidades de minorias" dilmista estaria no fato de o Brasil ter sido o país com o maior ganho de bem-estar do mundo entre 2006 e 2011. 

Da igualdade de todos como seres humanos resulta que os anseios coletivos, no seu agregado numérico, sejam legítimos, mesmo que para tal os anseios de poucos tenham que ser sacrificados, sejam estes poucos atuais opressores ou atuais oprimidos, e nesta última alternativa está a falácia presente quando o modelo dilmista e daqueles que, na situação corrente, falam em "muita terra pra pouco índio" e congêneres.*** Admitindo uma soma-zero entre índios e não-índios, está ausente o reconhecimento de que grandes fazendeiros, sejam eles latifundiários clássicos ou o novo e reluzente (de agrotóxico) agronegócio, concentram muito mais terra arável do que os índios, mesmo tomado o conjunto do Brasil, que inclui a mais remota Amazônia. Os pretensos anseios por equidade contidos na reclamação de "muita terra" pros índios só se sustentam se você ignorar, ou tomar por absolutamente legítima, qualquer desigualdade dentro do campo "não-índios." Em outras palavras, só faz sentido se você julgar as coisas em termos nacionais-chauvinistas-caindo-pro-racismo, e decretar que índios não são brasileiros. É o que faz Katia Abreu, em seus exercícios de antropologia. Se é brasileiro, se não é um bom selvagem isolado,  então não é índio. O exercício é mais sutil do que à primeira vista parece, porque ele não deixa saída para os índios. Se não é índio, mas brasileiro, não merece ter sua terra isolada da ação do "mercado" (com grilagem e fuzil). Se é índio, não é brasileiro, e aí os índios têm terra demais.

A estratégia de Kátia Sahlins, de invocar a comunidade nacional para justificar as desigualdades no meio desta, é denunciada, claro está, pela esquerda desde sempre. Ela, Katia, tem mais terra em seu nome do que os Guarani-Caiová, e são (digamos, incluindo a família Sahlins inteira) umas 30 pessoas, contra 45.000 guaranis-caiová. Mil vezes mais terra do que os "índios que têm muita terra." Se o problema é a distribuição equânime da terra entre todos os brasileiros, faria mais sentido começar por eliminar os casos de desigualdade mais forte; no Mato Grosso do Sul dos Guarani-Caiová, por exemplo, o índice de Gini da distribuição de terra (sem contar os índios, que têm menos de dois hectares cada) é de mais de 0,8 - pra comparar, o índice de desigualdade de renda brasileiro, altíssimo, é 0,51. Nem se trata apenas de brasileiros e pessoas físicas: as fazendinhas de Katia são muito menores do que aquelas possuídas por grupos estrangeiros como Carrefour, Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill, Nestlé, Louis Dreyfus, e companhia. O capital já atingiu desde antes de ser capital o internacionalismo com que os proletários sonham, e suas balas são antes de tudo para os próprios soldados.

Contra o hipócrita nacionalismo das multinacionais, urgem duas posições, uma imediata e outra definitiva. A imediata é simples: apontar a falácia, perguntar se a CNA que fala em muita terra para pouco índio não é, também, a favor da reforma agrária, ou pelo menos de um simples aumento no ITR para valores próximos aos pagos por proprietários de terrenos urbanos. A mais definitiva requer, entretanto, uma resposta para a pergunta - "por que alguns merecem ter terras que outros não merecem" - que se sustente mesmo após um hipotético e utópico fim das desigualdades. Ela não é necessária apenas para esse feliz fim da história, mas como resposta presente, já que a reforma agrária tira o argumento da CNA, mas não é em si um argumento positivo para afirmar os direitos dos povos tradicionais. Não é uma questão desimportante: afinal, se todos são iguais numa democracia, por que uma exceção a essa regra se justifica?

Uma resposta comum entre aqueles que defendem as causas indígenas, aquela para o romantismo, ao falar, por exemplo, dos índios "cidadãos de um universo harmonioso," em contraposição a nós, os desarmoniosos, de quem deveríamos aprender a harmonia.  Não é, aí, o bom selvagem, mas uma construção mais complexa, que fala de modos de relação com a natureza, mas peca por assumir que a relação destrutiva "ocidental" com a natureza é uma queda do paraíso (apesar da crítica à noção ocidental de paraíso no texto referenciado de E. Viveiros de Castro), uma questão de virtude que teríamos a aprender. Utilitariamente, a visão não funciona. O modo de vida dos índios na Amazônia (e de outras populações florestais, seja na Papua Nova Guiné de hoje ou no Japão Jõmon) é tão "harmônico com a natureza" (categoria ela mesma ocidental, pelo menos em seu modo comparativo) quanto outras populações tradicionais não-florestais, como, por exemplo, um camponês medieval (nem são, camponês ou índio, apenas avatares ou epígonos de seus respectivos ecossistemas antroponaturais. Sem trocadilho com James Cameron). Se tudo que os índios tivessem para nos ensinar,  fosse uma diferença assim, resumível em meia dúzia de palavras ou incomunicável senão pelo lento aprendizado, não seria uma diferença tão interessante assim. E não teria tanta utilidade prática - ausente um suicídio em massa, as taxas de ocupação da terra ideais de um sistema econômico florestal-agricultura de coivara precisariam de ainda mais terra do que o atual sistema.

Os índios não têm direito a suas terras, eu diria, porque encerrariam em si algum recurso aproveitável, incorporável à nossa riqueza (no caso, espiritual), mas simplesmente pelo direito à diferença, que implica na manutenção da diversidade. A diversidade do planeta está caindo em ritmo assustador, em todas as frentes. Espécies na natureza, sim, todos sabem disso, mas também a diversidade humana cai rapidamente, e aquela que é um pouco humana e um pouco natural. Línguas são extintas, como seus povos, como variedades de plantas e animais domésticos (e epidomésticos). A mortandade em curso desde a Revolução Industrial é, já, das maiores de todos os tempos no planeta, em qualquer registro. E isso deixa o planeta mais pobre. O ser humano, que durante seus primeiros milhares de anos causou menos extinções do que criou coisas novas, agora vê isso deixar de ser verdade, mesmo com o fantástico incremento na novidade científica-técnica; os milhares de culturas e manifestações são incorporados em meia dúzia de campos, todos eles ordenáveis através de cadeias globais de dinheiro e prestígio (com direito a Taj Mahal em Dubai). A criação de uma cultura global é, dessa forma, um empobrecimento. E um empobrecimento que não se dá em bases igualitárias, lembremo-nos novamente: não são nós versus os outros, de outra cultura. Culturas são hierárquicas, e quanto maior mais hierárquica. Não que a cultura global seja assim tão totalitária; nascem subculturas dentro dela o tempo todo, e algumas até se recusam à posterior reincorporação. Mas dentro desse cenário de mortandade, é necessário, é o mínimo, reconhecer o direito de alguém, de um povo, a se recusar à incorporação, e essa recusa não significa o isolamento total, mas pautar o grau e o ritmo de ligação com a cultura totalizante.****

Não é uma questão de noblesse oblige, mas de direito humano, nos termos mais pragmáticos, porque a incorporação forçada, e por baixo (sempre por baixo) a uma sociedade desigual resulta, quase que fatalmente, em uma taxa altíssima de sofrimento . Negar aos índios o direito às suas terras tradicionais é matá-los, cotidianamente. Não é uma questão abstrata, é uma necessidade direta; quantos cadáveres vale uma tonelada de soja? Um farnel de algodão? Uma meda de milho? Em nome da integração de territórios à nação produtiva, quantos mortos serão válidos, quantos genocídios? Não deixa de ser historicamente coerente: afinal, se todos os impérios têm enorme conta de mortos, não lembro de outros monumentos como o das Bandeiras no Ibirapuera, em que o caçador de escravos heróico é representado no momento da captura de seres humanos, ao invés de ter esse lado de suas atividades escamoteado.

 E, mais pragmaticamente ainda, ignorando até os direitos humanos (afinal, diria o Grande Irmão, os direitos de poucos podem ser ignorados em prol do interesse de todos), a manutenção da diversidade, da alteridade, é uma preservação de informação e, portanto, de segurança no sistema. Existe a possibilidade do apocalipse monocultural, versão em qualquer outra esfera do ocorrido na Grande Fome da Irlanda, em que a monocultura da batata não revelou-se uma boa idéia quando apareceu uma doença da batata. (Não que tenha sido essa a única causa da fome - o capitalismo deu uma ajudinha.) Culturas diferentes, assim como seres vivos diferentes, são um reservatório de possibilidades, reservatórios de alteridades que significam a resposta para perguntas que ainda nem fizemos (ou, talvez, nem possamos fazer antes da observação). Não porque são mais sábios e nobres que nós, apesar de não terem ar condicionado nem iPad, mas simplesmente porque são diferentes. Os interesses da multidão também são servidos pela preservação dos que preferem continuar outros. Nos seus próprios termos.

E, evidentemente, porque um planeta mais diverso é muito mais interessante. O que, para explicar as coisas em termos que até os engenheiros gernsbackianos como Dilma e Co podem entender, será muito importante na economia do turismo e do entretenimento do século XXI. Mucho money. Mooooney.



*com obsolescência programada, evidentemente.

**a ditadura militar brasileira, enquanto torturava e matava comunistas e índios, estatizava setores inteiros da economia. Em 85, eram estatais a produção de aço, petróleo, produtos químicos, aviões, armas e eletricidade; os serviços de telefonia, operação portuária, operação aeroportuária, transporte aéreo, e transporte regional ferroviário; eram fortemente controlados pelo estado a produção de biocombustíveis, a produção naval, e a distribuição de alimentos. A presença estatal na economia brasileira se assemelhava à finlandesa. A diferença estava na distribuição da riqueza, mais do que no modelo econômico; a ditadura brasileira, por supuesto, não acreditava nem em liberdade, nem em fraternidade, nem em igualdade.

***trata-se de um vasto e bizarro campo de insatisfação com privilégios percebidos como auferidos por índios, pobres, prisioneiros, mulheres, gays e outrem - sem, entretanto, em momento algum pular para a crítica aos privilégios auferidos pelo Thor Batista.

****Claro que o direito à escolha do isolamento total também deve ser respeitado. Há diversos povos que optaram por ele, na Amazônia e alhures.

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