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5.1.16

Museu do Amanhã e o de Ontem

O Museu do Amanhã, recém-inaugurado na Praça Mauá e principal equipamento cultural do projeto de renovação urbana do porto do Rio (dentre outros há ainda o museu de arte na mesma praça, a hemeroteca da Biblioteca Nacional, e as instalações de apoio do Theatro Municipal), foi alvo de mais críticas do que elogios, exceto entre os apoiadores diretos do atual governo municipal. As críticas, em geral, passam pela alegada suntuosidade do local, um projeto "faraônico" enquanto bibliotecas, hospitais, e museus estão fechados. Pessoalmente, acho essa linha de crítica um pouco míope. Não fosse porque os órgãos fechados não pertencem à prefeitura (que, aliás, emprestou ou deu dinheiro ao Estado para manter abertos escolas e hospitais), ou porque a decisão de construir o museu não se deu agora, mas há anos atrás, no auge da bonança, porque acho que um museu, e especificamente um museu de ciências, está longe de ser uma firula supérflua. Museus são uma das principais ferramentas que temos de atrair pessoas para se interessar por assuntos considerados mais arcanos, da arte contemporânea à cosmologia. E que o público se interessa por eles está mais que confirmado, tanto pelas filas enormes no próprio Museu do Amanhã (fiquei duas horas na fila, chegando às dez da manhã de um domingo de sol) quanto pelos dados de revistas especializadas, em que consistentemente museus de arte brasileiros estão entre os mais visitados do mundo. O argumento de que não se pode investir em museu por conta da saúdeeducação é, francamente, ignorar que museu É educação. Mais até do que boa parte do investimento em universidades...




Mas discordar das críticas mais comuns não quer dizer que não tenha críticas - e razoavelmente fortes - ao Museu do Amanhã. Apesar desse tema-nome nebuloso, "Amanhã," o museu era, esperava, basicamente um museu de ciência, com ênfase nas consequências futuras de nossas ações presentes. E por isso mesmo eu era um entusiasta da idéia; falta ao Brasil um museu de ciência de grande porte, e é  também a falta de interesse ou até saber do que se trata, e não só a facilidade de montar o curso, que faz com que uma proporção tão grande de nossos universitários esteja cursando administração e direito. Meu medo, por estar sendo montado pelo mesmo povo (a mesma panelinha que, ao que parece, monopoliza com seus contatos a organização museológica no Brasil, e oriunda antes do setor de espetáculos que do de ensino e pesquisa)  que organizou o Museu da Língua Portuguesa na estação da Luz, era que, como aquele, o museu virasse um museu chinfrim, um site de internet pra se acessar em quiosques num prédio lindíssimo.Pois bem, esse medo não vingou, mas o museu não é, ao fim e ao cabo, bem um museu de ciência. É mais um museu de arte com instalações vagamente organizadas em redor do tema do "amanhã." O Guardian, que põe o museu entre os dez melhores novos museus do mundo, diz que a exposição é "fruto da mente do físico e cosmólogo Luiz Alberto Oliveira," e que "conduz o visitante por uma série de experimentos e experiências," o que me faz pensar que não chegaram a conhecer o museu in loco, só o press release. Como eu torrei no sol pra ter essa experiência in loco, vamos à descrição, passo por passo, da visita:
- O prédio em si, de Calatrava, é belíssimo, por dentro e por fora. Na marquise, as vigas abauladas se encontrando em ângulos agudos lembram uma catedral gótica vazada. No saguão, já se vê formas mais compactas, orgânicas, fluidas. Os setores de exposição na exposição permanente, grandes sólidos negros dentro do cavernoso espaço branco, também são impactantes. E o mirante, com o grande espelho d'água com a estrela aluminizada no meio, é tão impressionante quanto qualquer mirante do mundo. Logo no saguão de entrada tem um globo revestido de leds, no qual são mostradas diversas informações sobre o planeta, como a contração e expansão do gelo polar ou as correntes marítimas. O globo é lindo, mas ficaria ainda mais interessante se, como no caso de seu primo maior no Miraikan ("Museu do amanhã") de Tóquio, houvesse espaço embaixo para se reclinar e admirá-lo, ou se os eixos do planeta mudassem - de novo, como no Museu do Amanhã japonês. Como está, o globo fica sobre o lobby (quase exatamente em cima do balcão de recepção), e o norte fica sempre pra cima, ou seja, quem está embaixo olhando só verá, sempre, a Antártida. 

- O primeiro setor da exposição permanente, "cosmos," alojado num elipsóide negro, é basicamente um pequeno planetário. Por um lado é ciência, por outro lado é um pouco redundante numa cidade que tem um planetário de verdade enorme, com três cúpulas (duas na Gávea e uma em Santa Cruz), com projetores Zeiss. A cúpula principal da Gávea, aliás, não faz feio entre os grandes planetários do mundo (tem 23m, contra 27m do planetário do Museu de História Natural de Nova Iorque). E com o museu a plena capacidade tem, claro, filas enormes - é um espaço relativamente pequeno - O setor seguinte, terra, consiste de três grandes cubos. Naquele dedicado ao oceano, uma belíssima instalação consiste de panos metálicos sendo soprados por jatos de ar e fazendo uma espécie de balé aéreo; nas paredes, fotos aéreas diversas de água. É, de novo, belíssimo. Mas não excita particularmente a curiosidade sobre qualquer coisa relacionada às águas, muito menos explica alguma coisa. No da vida, temos algumas informações - mal redigidas ao ponto de poderem ser chamadas de incorretas - sobre a baía da Guanabara e, de novo, mais fotos. Num mundo em que fotos similares podem ser vistas por todo mundo na tela do celular, não deixa de ser o equivalente do Museu da Língua Portuguesa com seus recursos similares aos de um CD-Rom. Finalmente, no cubo das culturas humanas pequenos totens dispostos dentro do cubo têm, adivinhem, mais fotos. Estas do tamanho dum celular mesmo. - Antropoceno talvez seja o melhor setor, pensando como museu de ciências. Um anel de monólitos gigantes parece que está caindo sobre nós. Nas suas faces internas, vídeos sobre o impacto humano no planeta; o som que acompanha o vídeo, grave, tonitruante, se soma aos monolitos "caindo" para aumentar o impacto da instalação. Dentro deles, pequenos espaços com descrições mais detalhadas desses impactos (seria mais interessante se fossem interativas, mas não se pode querer tudo.) - O quarto setor, "amanhãs," é descrito no folheto como "para onde vamos - nossas escolhas definirão os próximos 50 anos." São grandes mesas, com telas dispostas ao redor delas. Nas telas, jogos. Jogos científicos, você imagina. Nãaaaao. Um exemplo, jogado até o fim, é o jogo que lhe oferece o desafio se você seria um candidato a tripulante de uma viagem a Marte. Um jogo científico perguntaria sobre fôlego, resistência ao isolamento, disponibilidade para não voltar. Não este, ele pergunta coisas como se você se considera uma pessoa sociável e divertida. E o resultado, ao invés de ser se você seria ou não um bom tripulante numa missão a marte, foi que eu era um "andróide visionário." No melhor estilo de quizes de Facebook. Diacho, se calhar foi roubado de um quiz de facebook. A seção interativa da exposição permanente do maior museu de ciências do Brasil são quizzes de Facebook. Só falta "qual amigo lhe beijará na nave pra Marte."-  Finalmente, temos "Nós." Um par de conchas de treliça de madeira envolve, algo entre um náutilo e uma vulva, um pneu de cerâmica rabiscado com a palavra amanhã em diversas línguas. Uma pena de bronze de um metro está fincada no meio desse pneu. Além da instalação dos oceanos na exposição permanente, outra excelente instalação artística é a da exposição temporária "queda da perimetral." Você entra achando que terá um vídeo com as transformações do porto nestes 50 anos, depois da explicação da monitora acha que verá uma experiência imersiva da queda da perimetral. E dentro vê vídeos preto e branco que alteram padrões abstratos, rostos humanos soprados, e pedaços de vídeos da demolição da perimetral, usados como material pra remixagens abstratas. Não te aproxima da experiência real, não te explica nada. É bonito, com as diversas camadas de telas e a fumaça no escuro. É, de novo, uma boa instalação artística. Para coroar a impressão do museu, a lojinha, ao invés de jogos educativos e brinquedos científicos, como lojinhas de museu de ciências sói terem, tem bolsas, camisetas, suvenires de design, agendas... nem uma mísera geleca inteligente ou um kit monte seu robô solar. As figuras que aparecem nos créditos são todas carimbadas, todas ligadas ao establishment midiático (os tais quizzes de facebook foram feitos, aparentemente, pelo Marcelo Tas). E deu nesse museu altamente "simbólico" e com pouca informação. A tentação de puxar daí uma parábola para os males do Brasil, pós-saúva e saúde, não é fraca.


Nada do que falei é irremediável, tudo pode ser mudado, e até com relativamente pouco investimento de dinheiro. Tudo bem que o meu sonho seria, na verdade, a construção de um museu de ciências, com parque em volta, no terreno que era da fábrica da GE nos subúrbios da Leopoldina, e a transformação do museu do amanhã em museu do mar, muito mais temático. E, claro e principalmente - já fiz, afinal, até petição no Avaaz pra isso, gorada - a criação de um museu da África e da Escravidão no cais do Valongo.  



Por que no Valongo? Porque tanto simbolismo quanto conveniência ali convergem. O cais do Valongo, recentemente escavado, foi a instalação única pela qual passaram mais pés de escravos no planeta (mais de meio milhão de pessoas, entre 1811 e 1850). E o armazém defronte, um dos primeiros armazéns “modernos” do porto do Rio, foi projetado por André Rebouças, ele mesmo negro, neto de escravos, e abolicionista, um dos maiores engenheiros do Império, que proibiu a utilização de escravos como mão de obra na sua execução (em 1871, quase vinte anos antes da escravidão ser abolida no Brasil), homenageado junto com seu irmão no maior túnel da cidade (mas quantos por ali passam saberão ligar o nome à pessoa?). Não é uma instalação qualquer, em um lugar qualquer: é um memorial de importãncia, sem falsa modéstia, planetária. Instalação que, aliás, foi ela mesma uma tentativa, por estranho que pareça a nossos ouvidos ouvir isso, de apagar o passado colonial e andrajoso fazendo instalações científicas e higiênicas para o tráfico de seres humanos.

Além de ter o maior porto receptor de escravos do mundo, nesta cidade funcionava toda a complexa cadeia de tráfico humano, que ia desde a construção e contratação de navios à contratação e repasse de seguros. Aqui, também, na condição de capital imperial, foram tomadas decisões importantes que mudaram a história do tráfico e da escravidão no Brasil, como por exemplo, a proibição do tráfico negreiro e a definitiva abolição da escravidão em  13 de Maio de 1888, quando nos tornamos o último pais das américas a fazê-lo.

É uma nódoa na história nacional, portanto algo melhor esquecido? Não. Nódoas são para serem lembradas, e a cultura que saiu da escravidão deve ser celebrada. Nem é uma idéia tão original - existem museus da Escravidão em outras cidades, ligadas mais ou menos ao tráfico, como em Liverpool e Nova Iorque. Existem museus do Holocausto, outra grande tragédia da humanidade, como em Berlim ou Washington. Este, aliás, atrai 17 milhões de visitantes por ano, muito mais que qualquer atração turística brasileira. Hoje, o Brasil retoma ligações com a África que em parte se perderam ao longo do Século XX, e um museu que registre o maior laço entre os dois países é também importante. E, finalmente, na parte “África,” sem falar da escravidão, o Rio de Janeiro, com uma população negra bem maior que a de São Paulo, não tem algo da importância do Museu Afro-Brasil, do Ibirapuera.

Acervo não falta - as próprias escavações do porto retiraram inúmeras peças relevantes à história da escravidão no Brasil, e os arquivos em mãos de diversas instituições públicas na cidade também não são pequenos. Não que a idéia seja um museu “sótão,” à moda antiga. Pelo contrário, o ensino, a celebração e a mem´ da tragédia que foi a escravidão e da riqueza que dela se extraiu, devem incluir seções interativas, devem incluir fac-símile, toda a tecnologia necessária pra que o Museu da África e da Escravidão não seja “mais um museu,” visitado principalmente por colegiais entediados, e sim o que tem potencial para ser - uma atração internacional carioca, no nível do Cristo ou do Pão de Açúcar. (E um centro de pesquisas, igualmente de importância internacional.) Tem, também, o potencial para reforçar e reforjar as relações brasileiras com a África, continente que é hoje o que mais rápido cresce no mundo, e com a diáspora negra em toda a orla do Oceano Atlântico. Enfim, tem tudo pra ser uma atração cultural global, inclusive se prestando melhor do que os museus genéricos escolhidos para o papel de dar ao "Porto Maravilha," em seu papel de cidade globalizada, vernizes de cultura e sofisticação. E não se pode conceber um amanhã ignorando o ontem.








PS: Curiosamente, a brochura do museu em espanhol (tinham acabado as cópias em português) o chama de museu de "el" mañana ao invés de "la" mañana. Vai ver tem na prefeitura algum fã de Gorillaz.

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