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17.5.16

Bem vindos a Asa Branca

Comentaristas da verve do presidente interino (nudge nuge wink wink) do Brasil  se dividem, parece, entre povo horrorizado com o ataque sistemático a tudo que há de progressista, com misoginia altos teores e demofobia explícita, e aqueles que, embevecidos, comentam que Temer "usa até mesóclise." Não se sabe se o segundo é amor encomendado ou aquela admiração criticada pelo Chesterton quando explica que Quinta-Feira "era, como todos os homens, capaz de temer uma força desmesurada, mas não era covarde o bastante para admirá-la." Mas o primeiro também é, acho, um problema de leitura.

Um rábula de quinta que dá um golpe e vira presidente do Brasil, se comportando como se tivesse virado prefeito de cidadezinha.

É isso o "vou pôr a Marcela na área social," pra fazer chá das senhoras. O Michelzinho escolhendo a marca tosca com bandeira velha. É isso, e não alguma misoginia alucinada, o "mundo feminino." É a linguagem empolada (e geralmente cheia de erros) de advogado de 5a. Não estou negando que Temer seja misógino e machista, só dizendo que o que falou é baseado na mediocridade e numa tentativa de usar uma linguagem não tão bem compreendida, não em alguma agenda positiva antifeminista. Olhaê mais uma do Baixo Advogadês "queremos fazer um governo fundado num critério de alta religiosidade." É ou não é digno de político de novela ou advogado de porta de cadeia?

E idem a maior parte do que fala o povo em volta: nada do que propõem é novidade - a diferença é que agora não têm, no governo, quem se lhes oponha. Repetem, sem nem entender muito bem o que é, o ideário neoliberal porque acham, confusamente, que isso é coisa séria, que os fará grandes. Isso quando não simplesmente vêem nele a conveniência, própria ou dos que lhes compraram. E por que esse povo não inclui nenhuma mulher, por que Temer não chamou nenhuma? Ué, porque ele não chamou ninguém, exceto talvez o Meirelles, talvez o Moraes. O resto tudo foi "loteado," foram outros que indicaram, e como esses outros são um dos Congressos mais machos do mundo, e mais ainda excluídas as parlamentares de esquerda, deu nisso. 

E, de novo, a mediocridade, a tacanhice: fosse inteligente, Temer teria mantido algum ministério irrelevante (poderia ser o da cultura mesmo, exsanguinado, poderia ser, sei lá, ministério da beleza recatada) e poria uma mulher nele. Só pra evitar a manchete que correu mundo, que o pôs como retrocesso em relação, não apenas a todos os presidentes da Nova República, como até àquele ditador que gostava mais do cheiro de cavalo que do cheiro de povo.

(Mézanfã, o fascismo, transformado em apoteose do Mal no imaginário coletivo (justificável pelo ideário e pelos crimes cometidos) não era muito mais que isso. Um bando de bufões corruptos. Os velhos oficiais do exército alemão ficavam horrorizados quase continuamente com a incompetência e corrupção dos nazistas que lhes davam ordens.)

O mais curioso é essa porcaria pernóstica, hipercorreta, e semiletrada ser confundida com uma fala de elite pelos jornalistas nacionais. Tipo, os correspondentes estrangeiros têm desculpa pra fazer essa confusão. Os nacionais, cacete.

Ajuste sinistro

Convencionou-se, no Brasil, que responsabilidade fiscal é um tema "de direita." Soluciona-se todos os problemas do Brasil seja com a eliminação da corrupção e incompetência (tema que irmana todos que não são, naquele momento, governo), seja com a "auditoria da dívida," que depende de não entender como funciona uma dívida pública e achar que foi um contrato de dívida emitido lá atrás pelo FH ou pelo JK que ainda está sendo pago.

E no entanto, dá pra fazer o ajuste fiscal tão sonhado pelos economistas de direita de uma forma bastante diferente da normalmente assumida. O Brasil - já é quase consenso - é um país em que os impostos indiretos, que pesam mais sobre os mais pobres e atrapalham a economia, são os principais, enquanto os diretos, que pesam sobre renda e patrimônio e portanto sobre os mais ricos, são acessórios. Para inverter essa lógica E fazer o ajuste nas contas públicas, é só

1) Aumentar impostos diretos (IRPFITRITDIPTU (estes últimos subnacionais)). O ITR hoje não morde nem um bilhãozinho; é menor do que o IPTU arrecadado por São Paulo ou pelo Rio. O IRPF para alguém entre os 5% mais ricos não vale 17% (contra 34% nos EUA, que não são exatamente comunistas). O ITD tem alíquota máxima de 8%, vs., de novo nos EUA, 40%. O IGF, que ainda não existe fora da constituição, renderia mais uns trocados. Aumentar o preço da gasolina, sim, que transporte individual motorizado não precisa de subsídio público. Transformar a CIDE numa taxa de carbono, e razoavelmente pesada. 

2) Quando o ajuste tiver sido feito desse jeito, e a necessidade de segurar as pontas tiver passado, cortar os impostos indiretos federais o máximo possível, e incentivar que estados e municípios façam o mesmo. Com sorte, extinguir o IPI, pelo menos, quiçá o ISS, diminuir bastante o ICMS (e unificá-lo num IVA nacional, sempre cobrado no destino). Pode-se até estabelecer a regra de redução dos impostos indiretos já na legislação que aumenta os progressivos. Coisa do tipo "a cada ano, deverão ser feitas desonerações permanentes em tais e tais impostos, equivalente à média do aumento real de arrecadação dos últimos três anos."

Presto: Ajuste nas contas públicas feito com bônus estrutural. 

O bônus não é pequeno. Noves fora a diminuição dos indiretos aumentar a competitividade da economia brasileira, a desigualdade, que se reduziu com a implantação dos benefícios sociais e o crescimento maior de regiões mais pobres (boa parte da desigualdade brasileira é a desigualdade regional), parou de descer nos últimos anos, devido aos limites dessa política. Ora, nos EUA a diferença entre a desigualdade pré e pós impostos é de 0,11 Gini. Isso é 0,11 de diferença a mais do que no Brasil. Sim, os impostos brasileiros não fazem diferença alguma na desigualdade. Admita-se que é um mal continental... reparem no gráfico: a desigualdade latinoamericanaé maior "no mercado" realmente, mas ela fica muito maior depois que os impostos progressivos e benefícios idem fizeram a sua parte na Europa.



A longo prazo, aliás, a redução da desigualdade também é um projeto de responsabilidade fiscal.  E o aumento do ITR pode servir como instrumento de reforma agrária.

É claro, pode ser perguntado, como faz o Ciro Gomes, se isso "dá bilhão." E a resposta é, muito claramente, sim. Vamos fazer umas continhas:

O ITR, hoje, não dá nem um mísero bilhão, cobrado sobre propriedades que valem um trilhão de reais. Se aumentarmos a alíquota média pra 1,5%, estamos falando de 15 bilhões de reais. Para 3% (em linha com o fato da maioria das terras estarem hoje com latifúndios), 30bn.

A alíquota média do IRPF para os 5% mais ricos está abaixo de 20%. Se aumentarmos para 30%, em linha com o IRPF cobrado pelo governo federal americano (muitos estados americanos também dão sua mordida), a arrecadação adicional pode ser de 60bn. Se além disso acabarmos com a isenção sobre dividendos, coisa em que o Brasil é quase único no mundo, são outros 60bn.

Comparado a esses números, o imposto sobre grandes fortunas é até modesto - seriam por volta de 6bn.

Para resolver a penúria estadual, ao invés de enfiar bizarros juros simples retroativos na União, a proposta (até modesta, comparada com a maioria dos países) de aumento do ITCMD renderia 20bn.

Estamos falando de um ajuste de no mínimo, dando um desconto de 30% em todas as previsões acima, 120bn. Bem mais do que o ajuste proposto pelo governo interino, e sem afetar a imensa maioria da população.

"E não vai cortar nada?" Bem, primeiro acho uma falácia falar em cortar gastos (assim, de baciada; aumentar a eficiência do gasto público sempre é bom) "pelo ajuste." Um gasto público deve ser cortado se for desnecessário, com ou sem ajuste, e se é necessário não pode ser cortado, com ou sem ajuste; usar o ajuste de desculpa para cortar os gastos que você queria cortar de qualquer jeito é hipocrisia. Mas pode deixar que tem uns gastoszinhos que, bem, eu cortaria com a desculpa do ajuste:

O ministério da Defesa gasta 81bn; é um dos maiores orçamentos de defesa do mundo, maior que o de Israel. E em troca temos forças armadas er... não tão boas quanto as de Israel, digamos. O principal dos problemas é o enorme gasto de pessoal, inchado pelas pensões e pelo oficialato, e portanto difícil de resolver de chofre - mas o fim do alistamento obrigatório e a redução do contingente grande de recrutas pra metade dessa quantidade de militares profissionais já ajudaria. Uma revisão do oficialato também - o Brasil tem 29 generais e almirantes, contra 39 dos Estados Unidos. Nos EUA, um vice-almirante comanda uma esquadra; aqui, há 18 vice-almirantes, e não há 18 navios de combate principais na marinha brasileira. (São oito fragatas mais o porta-aviões que mal sai do cais.)  E o problema do muito cacique pra pouco índio continua quando se desce a escada. É difícil dizer quanto seria poupado pela revisão, mas 20bn (deixando dez para o aumento do investimento e custeio) tá de bom tamanho. Além disso, para o ajuste emergencial, daria para vender as vastas áreas militares já inúteis para a defesa nacional e encravadas em áreas caras das capitais. Só o campo de futebol do forte de Copacabana ou o forte da Urca já dariam bilhão. Cada. Isso tudo, claro, assumindo que as forças armadas são mesmo necessárias, num nível melhor que o de hoje. Se você considerar que não há nenhum cenário de invasão plausível, e mal há possível, pode cortar logo 60bn, mantendo só uma força de autodefesa básica, com princípios baseados em defesa antiaérea, bateria de costeira, e treinamento de guerrilha, ao invés de tanques e porta aviões que ninguém sabe pra que serviriam. E ainda diminui o golpismo.

O governo também segue subsidiando hidrocarbonetos, sob a desculpa do estímulo à atividade econômica e aos transportes. Ora, é um subsídio pra lá de mal focado: se queremos subsidiar atividade econômica, subsidie-se aquela área específica.  São outros 30bn por ano...

Ok, temos 210bn de ajuste, à sinistra. Nada disso é indiscutível, claro - mas seria interessante se fosse mais discutido pela esquerda, ao invés desta defender que responsabilidade fiscal é besteira. Até porque tudo isso é, ou talvez devesse ser, para a esquerda bem-em-si. 

12.5.16

Primeira visada sobre o ministério do presidente interino

Bizoiando os ministérios que foram extintos ou upgradeados, e sua distribuição, bem rapidinho (depois, à medida que for aparecendo mais coisa, atualizo) :

Cultura e Ciência sumiram, além dos ministérios sociais (que todo mundo já sabia que rodariam). Não tá claro se mudança de nome da CGU, órgão responsável por fiscalizar internamente o governo, quer dizer algo.

Núcleo duro (aqueles ministérios que não são loteados para o Congresso mas ficam sob controle direto de aliados próximos ou com quadros técnicos) por PT era Saúde (até este ano), Educação, Meio Ambiente, sociais e econômicos, além dos que são centrais pela própria natureza como Casa Civil. Sob Temer parece ser constituído só dos centrais e econômicos, mais, curiosamente, Turismo. Claro que com o PMDB sendo o partido do vice fica mais difícil fazer essa distinção.

O loteamento mais amplo num ministério por outro lado mais apertado, aliás, dá uma explicação bem prosaica pro "clube do bolinha," apesar do peso simbólico enorme do primeiro ministério sem mulheres desde que Figueiredo nomeou Esther Figueiredo ministra da Educação. O Congresso é quase um clube do bolinha, e mais ainda retiradas as congressistas dos partidos proscr- er, de esquerda. Foi o Congresso, mais que Temer (apesar da campanha de capitalização do machismo movida por ele através da imprensa) que indicou o clube do bolinha.

Justiça fica com Alexandre Moraes, que parece ser o único "quadro técnico" do ministério inteiro. E um quadro técnico que aponta pra linha dura - a nota da fenapefe avisando que estrangeiros serão presos se se envolverem com política não deve ser renegada pelo MJ...

Falta ver a nomeação do segundo escalão, inclusive daqueles pedacinhos do segundo escalão com mais poder que muito primeiro, como Petrobras e BNDES. Imagino que esteja à cata de varões de Plutarco para sanear esses lugares em que o PT instaurou a corrupção.

2.5.16

Os milhões da Paulista.

Uma das brincadeiras mais comuns em manifestações (fora o tobogã, a ciranda, e o pula-pirata-no-taser) é a contagem de cabeças. A polícia, costumávamos dizer, invariavelmente dá desconto; hoje sabemos que o desconto ou ágio varia segundo o gosto do freguês. Os números são feéricos, muitas vezes francamente impossíveis - a capacidade máxima do metrô, meio de transporte com mais capacidade de muito longe, significaria umas 80 horas para levar todo o povo alegado no réveillon de Copacabana; as três linhas do metrô de SP que chegam na Paulista demorariam mais de 10 horas para levar o público alegado pela polícia na maior marcha pró-impeachment. O DataFolha tenta chegar a uma medida mais razoável, mas também parece querer agradar o freguês - e mesmo seus números, vistos como ridiculamente baixos por gente acostumada com milhões e milhões, são na verdade contas chutadas bastante pra cima, principalmente quando se trata de clientes agradáveis. Fazendo uma conta mais realista, podemos simplesmente usar os números duma boatchy lotada até a tampa - 2 pessoas por metro quadrado - mais que o dum sistema de transporte público lotado até o nível máximo de conforto - 6 pessoas por metro quadrado - e multiplicar pelo número de metros quadrados dos, chamemo-los assim, palcos da democracia.

Lembrando que o número real sempre estará, mesmo que digamos que tal ou qual manifestação estava lotada, quando muito próximo ou pouco acima do primeiro. Num metrô ninguém se mexe, tem barras e pegadores pra se apoiar. Praças e avenidas têm ruas laterais, mas também tem árvores, bancas, meios-fios, barraquinhas de churrasquinho, postes... e uma pessoa em movimento, que é o que acontece mesmo numa manifestação estática, ocupa mais espaço que uma parada. Perto ou acima de 6 pessoas por metro quadrado, você já está falando duma lotação que só é possível se temos paredes para nos escorar. O metrô de Tóquio, infame pela hiperlotação, chega a 11 pessoas por metro quadrado, e isso já deu em portas com vidros blindados trincados e aço reforçado amassado, para ter ideia da pressão que significa.

E qual é o tamanho, medido diretamente pelo Google Earth e sendo bastante generoso na definição do que é cada área, incluindo praças comunicantes conforme seja o caso, desses tais palcos?

São Paulo:

Av. Paulista, 110.000m2
Anhangabaú, 81.000m2
Praça da Sé, 54.000m2
Largo da Batata, 44.000m2

Rio de Janeiro:

Presidente Vargas, 350.000m2
Av. Atlântica (sem contar a faixa de areia), 330.000m3
Lapa, 39.000m2
Praça XV, 34.000m2

Brasília

Esplanada dos Ministérios, 615.000m2
Praça dos Três Poderes, 62.000m2

Em outras palavras: estando absurdamente lotada, nível parada gay pra cima, a Paulista admite quando muito 350.000 pessoas em seu perímetro, bem longe não apenas dos milhões feéricos anunciados como até do "modesto" total anunciado pelo DataFolha para a passeata antipetista deste março. Para atingir os números alegados pela polícia de São Paulo para a mesma, seria necessário um nível de lotação que não é atingido nem numa orgia ou scrum de rúgbi, no metrô de Tóquio ou numa pirâmide humana. O que se pode concluir daí é que as manifestações desta crise política, importantes como são, mobilizam uma fração muito pequena da população total das metrópoles - e nem há infraestrutura pra manifestações que ultrapassassem essa ordem de coisas, com a exceção flagrante de Brasília, criada para ser Côrte. Comparando a capacidade (falando em 3 pessoas por metro quadrado) dos principais palcos de cada metrópole com sua população total, e arredondando pra cima:

São Paulo: 330.000 pessoas vs 20 milhões - 2%
Rio de Janeiro: 1 milhão vs. 14 milhões  - 7%
Brasília: 2 milhões vs. 4 milhões - 50%

O curioso dessa comparação é que Brasília seria mais típica, na proporção de sua população que cabe num palco, das cidades antigas do que o Rio de Janeiro ou (principalmente) São Paulo. As grandes metrópoles de hoje se metastatizaram, não apenas muito além da escala humana como muito além mesmo da escala da multidão. Imaginemos um palco onde coubesse metade da população de São Paulo: ele seria um descampado muito maior do que o parque do Ibirapuera (que tem 1,3km2). O século XX que foi o século das massas foi o começo do século XX; o século XX tardio e o XXI são os séculos de simulacros de massas. Mesmo que fosse possível mobilizar uma parcela significativa da população, não haveria aonde essa parcela se apresentar, ser um corpo ativo e presente. Talvez, quem sabe, de forma atomizada, distribuída em diversas áreas - mas aí já não é exatamente a multidão singular, já é alguma coisa de outra.