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30.8.17

Estupro não é crime

Por que estupro não é crime?
Digo, no concreto, quando acontece mesmo, quando uma mulher abusada sexualmente o denuncia. Nunca é crime, sempre é questionado. Pergunta-se em que circunstâncias ocorreu. Se a vítima estaria pedindo. Se fez BO. Se gravou com câmera. Estupro, em termos abstratos, é coisa pior até que assassinato, é pra ser punido com torturas bárbaras, com castração química, o escambau. Mas estupros concretos nunca sequer aconteceram, quanto mais serem crimes. Por quê? Parece esquisito, né?
Eu diria que a resposta é uma questão de semântica, em que o significado que o cidadão de bem empresta às palavras é um tanto diferente daquele que o dicionário dá.
A primeira palavra: "estupro." Estupro, para o cidadão de bem, não é um violência de cunho sexual exercida contra uma pessoa. É uma violação da honra da vítima, especialmente da vítima mulher. Até há nem tanto tempo, isso era inclusive a concepção legal, tanto que não havia estupro de homem mas "atentado violento ao pudor," e era considerado impossível o estupro dentro de um relacionamento (que, aliás, é dos mais comuns). De certa forma, somos nós, que pensamos o estupro como violência sexual, os revisionistas, porque a noção dele como crime contra a honra familiar (e a mulher como basicamente propriedade violada da família, em última instância) é a mais antiga; não é à toa que a palavra "rapto" já foi sinônimo de estupro. 
A segunda: "bandido." Não, bandido não é uma pessoa que comete um crime. Nesse sentido, o cidadão de bem é até esclarecido, e considera que quem cometeu um crime cometeu um erro, mas tem direito ao arrependimento e ao perdão. Não se torna um criminoso por conta do crime, não tem sua natureza alterada. "Bandido" nesse dicionário é um subversivo. É alguém, preto, puta, pobre, ou petista, que saia do seu galho, que questione de alguma forma relevante seu lugar na hierarquia. E contra esses bandidos, por sua vez, é punição justa qualquer ação que de outro modo poderia ser crime. Não adianta falar de hipocrisia, porque é menos hipocrisia do que uma outra visão de mundo, em que os crimes dispostos nos estatutos da lei são menos importantes do que uma atitude subversiva, especialmente quando esta sai de classes perigosas, subalternas. 
E a terceira, "puta," porque qualquer mulher que saia do molde de virgem submissa entra automaticamente para a categoria de "puta." Teve gente xingando irmã Dorothy, freira e sexagenária, de puta comunista, e assim achando justificável seu assassinato. É por isso que o ato de ter bebido tem efeitos opostos sobre o julgamento moral quando se fala da vítima de estupro que bebeu e do estuprador que fez o mesmo; o estuprador (que não é subversivo, portanto não é bandido) cometeu um erro, e isso é tanto mais compreensível quanto ele não estava em pleno controle de si mesmo. A vítima, por ter bebido, se definiu como puta - e, portanto, mais indigna de qualquer solidariedade da parte do cidadão de bem. Quer dizer, não que seja necessário, porque ela já é suspeita de ser puta pelo próprio fato de ter sido estuprada. 
Nessa visão de mundo, o estupro é impossível. É um silogismo: qualquer mulher, pelo ato de ter sido sexualmente abusada, passa automaticamente a ser menos do que honrada e, portanto, puta e, portanto, abusar sexualmente dela não será estupro. O estupro, para o cidadão de bem, não existe, não pode existir.

19.7.17

Novos heterossexuais na ilha de Caras

Eu não queria, mas depois de uma semana sem o assunto ir embora, a ânsia de dar pitaco subiu demais. O CASO RODRIGO HILBERT não me parecia interessante, desde o começo, porque, bem, pra mim as pessoas falando do que o moço "é" a partir de programa de TV, revista Caras, e press release... é meio surreal. Dá vontade de perguntar se as pessoas também acreditam naquelas fotos que representam os herdeiros reais britânicos como uma simpática família de classe média cuidando do rebento; ora, não tem por que achar que a família real branca da Copa seria menos um produto de mídia do que a britânica. Inclusive com as hordas de babás, faxineiras, e seguranças que ficam de fora das fotos de família feliz.

Então, ok, eu vou comentar essa porcaria, JÁ QUE VOCÊS INSISTIRAM TANTO, até pra não ser demitido da escola da vida, que nem a recepcionista que não tinha opinião sobre o Lula, mas não é pra falar do que o moço é, ou do que os homens não são, mas justamente pra falar do produto de mídia que se chama "homem ideal." O novo homem ideal vendido pela rede Globo, em contraste aos galãs de antigamente. E bem, por mais que seja um produto de mídia feito pra vender, não dá pra reclamar de que o novo, ao invés de ser um principezinho paparicado, é um sujeito que paparica sua família, né.

Sim, ao invés de principezinho paparicado; o modelo Hilbert substitui o modelo, sei lá, Fábio Assunção, não os cafajestes e machões, cujos públicos são outros; a Globo, ou qualquer outra emissora, não vai ser burra de achar que um único produto vai agradar a todos os tipos de clientes. Então, nisso, o que você tem não é tanto um novo ideal de masculinidade quanto um novo padrão do que seria um tipo específico, o "homem atencioso." E aí entende-se também o beicinho (que chamar de frustração e choro, ou enfiar metaproblematizações mis, é grandiloquência facebookiana) dos homens; pra ser atencioso agora, ao invés de só levar umas flores e não gritar, precisa saber cozinhar e cuidar dos filhos, dá muito mais trabalho. Mas não, não é uma revolução no sistema. No máximo, um aumento da dificuldade em corresponder a um dos estereótipos disponíveis no mercado. Bem vinda, sem dúvida, que tava muito fácil pros homens com preguiça de ir na cadimia e tomar bomba pra virar "macho alfa."

O mais curioso, nesse produto e para alguém dado a pessimismos, é como a Globo desistiu de vender um casal perfeito mais parecido com a população brasileira, pra voltar à Islândia de sempre. No episódio da Copa, lembremos, quem decidiu que um casal maravilha negro não servia foi a Fifa, e não a emissora do Jardim Botânico, e em geral a emissora parecia que ia, por mais que a passo glacial, aumentando a representação negra em seus quadros. Nesses três anos (sim, só se passaram três anos desde a Copa do Mundo, por mais que pareça que estamos em outro século), seria o caso de se questionar se algo mudou no pensamento globoso ou é só uma infeliz coincidência. Eu, fico com a impressão de que sim, vendo capa de revista no supermercado, mas revista no supermercado não é sequer uma visão anedótica razoável...

E sim, acho que isso faz diferença, porque o ideal de domesticidade burguês tem, por trás dele, um rosto proletário, feminino, e, no mais das vezes, negro. A stepford wife só pode ser assim perfeita, fazendo jantares elaborados e cuidando afetuosa e criativamente dos filhos, porque não precisa lavar a louça nem varrer o chão. Ao comemorar que o ideal de domesticidade agora é menos machista, quase unissex, não se pode ignorar que ele continua sendo um ideal tornado possível por proletárias que, por sua vez, não têm a possibilidade de ser assim ideais. A virtude, nesse caso como em tantos outros, não é igualmente acessível a todos. E é uma virtude burguesa e branca tornada possível com a mais valia negra.


2.5.17

O gestor é, antes de tudo, um líder

Desde que foi eleito,  em São Paulo, o candidato que utilizava o bordão "não sou político, sou um gestor," os críticos têm notado que seu estilo de governar é exatamente o contrário da gestão tecnocrática que se esperaria da ideia de "ser um gestor." As evidências se acumulam, principalmente na área de trânsito, em que o slogan da campanha ("acelera São Paulo") era um desafio aberto ao que pregam urbanistas e engenheiros de transporte mundo afora, isso é, um desafio aberto à técnica e à gestão técnica. Nesse sentido, muito mais próximo da ideia de "gestor" estaria o prefeito anterior.

Ou seja, a ideia do que seria um gestor - de quem acha que o prefeito não é um- está errada. Melhor dizendo: a ideia que o prefeito, e aqueles que votaram nele, já que esse desafio à administração técnica já vem desde a campanha, fazem do que seja um gestor não passa pela gestão eficiente ou científica; pelo contrário, tanto em São Paulo quanto no Rio, à esquerda e à direita, a ideia da gestão tecnocrática foi a grande derrotada das eleições municipais de 2016, sendo incapaz - mesmo com um rol de realizações bastante amplo, dentro dos seus respectivos termos - de sequer chegar ao segundo turno.  Gestor, portanto, pra quem se elegeu e pra quem votou, quer dizer outra coisa. O que seria essa coisa, então?

A explicação parece estar no único livro citado por Dória em sua cerimônia de posse, que é exatamente o tipo de livro que também alcança grande popularidade entre os bispos da Universal, um livro de autoajuda para "empreendedores." Nele, como em boa parte da ideologia que se ensina para aspirantes a administradores nestes tempos pós-tayloristas, não se fala tanto da administração técnica, como aplicação de esquemas organizacionais em resposta a dados empíricos coletados, mas sim das qualidades pessoais, cultivadas e inatas, de um "verdadeiro líder." A ênfase é na capacidade de liderança e na força de personalidade individuais. O gestor, na política do século XXI, do Banespinha à Casa Branca, não é um técnico, mas sim um Líder. Assim, com maíúsculas. Um grande homem, um Ubermensch que lidera os verdadeiros patriotas e atropela os Untermenschen; algo parecido com o que aconteceu nos anos 30 e 40, com a diferença principal sendo a mudança do locus de poder, real e simbólico, das forças armadas para as grandes corporações, o que fez os Líderes trocarem a farda pelo terno.

Assim como na versão original, o desprezo público pela estrutura técnico-científica não significa rejeição, mas antes subordinação, com o big data e as redes virtuais se substituindo ao rádio e à imprensa escrita, Cambridge Analytica no lugar de Der Angriff. O Líder está acima das "opiniões" de reles cientistas, mas usa sem problemas o poder que pode ser conferido pelos mesmos, e inclusive recorre a eles, lhes demanda, fórmulas miraculosas que lhe permitam entregar o que promete - porque o que ele promete, apesar da frequente linguagem de sacrifício, é o famoso almoço grátis, em que a ciência mais a eliminação dos inimigos políticos levará o povo a uma feliz Cocanha.

É a história se repetindo como farsa, como no caso de Luiz Napoleão Bonaparte? Só se você ignorar que já era farsa da primeira vez.






6.4.17

Nabucos in love

"Nabucos" são aquelas pessoas que acham que tudo fora sempre será melhor que no Brasil, que tal ou qual coisa ruim "só podia ser no Brasil mesmo." O nome é homenagem, via Mário de Andrade, a Joaquim Nabuco, famoso pelo abolicionismo, mas que também perpetrou o texto abaixo:

Nós, brasileiros - o mesmo pode-se dizer dos outros povos americanos - pertencemos à América pelo sedimento novo, flutuante, do nosso espírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas. Desde que temos a menor cultura, começa o predomínio destas sobre aquele. A nossa imaginação não pode deixar de ser europeia, isto é, de ser humana; ela não para na Primeira Missa no Brasil [...].

Estamos assim condenados à mais terrível das instabilidades, e é isto o que explica o fato de tantos sul-americanos preferirem viver na Europa... Não são os prazeres do rastaquerismo, como se crismou em Paris a vida elegante dos milionários da Sul-América; a explicação é mais delicada e mais profunda: é a atração das afinidades esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos nós, da nossa comum origem europeia. A instabilidade a que me refiro provém de que na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva humana; que na Europa nos falta a pátria, isto é, a forma em que cada um foi vazado ao nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação europeia. As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre

Claro está que a maioria das pessoas que sofre da moléstia de Nabuco, como a chamou Mário de Andrade (espicaçando Drummond, aliás), não é tão "européia" quanto o original. Aliás, hoje, a "verdadeira pátria" de quem sofre desse mal já se espalhou, e pode estar também na América do Norte, ou mesmo na Ásia. E ele não é exatamente raro. Quem não ouve, pelo menos uma vez por dia, algo na base do "esse país é uma merda," "só podia ser no Brasil," ou "só podia ser brasileiro"?Desapreço, ódio, rejeição ao país natal, que estranhamente coabitam na mesma personalidade com a invocação de símbolos nacionalistas como a bandeira ou a camisa da seleção. E fica a pergunta: como explicar essa dualidade tão aparentemente contraditória?

Pois bem, a resposta é que, na verdade, o nabuco é um tsundere, que fica negando a própria afeição e xingando seu objeto. E ele ama o Brasil. Não os brasileiros, não o Brasil como ideia, como algo que poderia um dia existir, mas o Brasil real, as relações sociais reais do Brasil. OK, não todos os nabucos. Mas boa parte deles vai dizer frases que expressam o desejo de que o Brasil seja, ainda mais intensamente, aquilo que já é, seja mais ainda "Brasil" como diferença em relação a outras nações. Coisas como:

"O problema do Brasil são todos esses direitos dos manos." (A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. São seis vezes os mortos da polícia americana, ou seiscentas vezes os da alemã, e mesmo três vezes mais do que a de países violentos como Colômbia, Venezuela, ou México.)

"O Brasil é ruim por causa do custo trabalhista." (Já temos a menor proporção de salários sobre renda nacional e a maior desigualdade de salários, de qualquer nação grande do mundo; a jornada de trabalho média é das mais altas; a terceirização é ampla e, agora, irrestrita.)

"As cadeias no Brasil são muito boazinhas com os criminosos" (São das piores cadeias do mundo, se não as piores; a superlotação é, de longe, a pior.)

"Falta religião e moral neste país." (O país é dos mais religiosos e afetos a temas morais em todas as pesquisas comparativas. O caso mais alucinado que já ouvi nesse sentido foi quando um moço me dava de exemplo de país ideal o Japão e dizia isso - só que o Japão é o país mais ateu fora da Escandinávia...)

"Os ecoxiítas que impedem o desenvolvimento nacional" (O Brasil é o país em que mais morrem ativistas ligados à terra e ao meio ambiente; muitas empresas de países ricos elegeram o país como centro de processos poluentes.)

E assim por diante. Cada vez que uma pessoa dessas diz que acha o Brasil ruim, está dizendo que gostaria que o país fosse, ainda mais intensamente, o que já é.

Devem estar bem satisfeitos.